quarta-feira, 1 de junho de 2016

Dia da criança em Lichinga


Mais um dia da criança em Portugal e lembro-me sempre dos meus alunos em Lichinga (2011), da excelente experiência que foi preparar toda a festa e do sucesso que foi o dia esperado.
Na tentativa de fazer passar os sentimentos que por lá cresceram, deixo aqui alguns excertos do livro Titia amanhã não vou vir, onde relato toda a minha experiência como professora numa escola de 1º ciclo no norte de Moçambique (pode ser adquirido enviando email para abrantes.sonia@gmail.com).

"Depois de várias horas, a escolher, cortar, colar e pintar, começamos a ver os resultados dos preparativos para o dia da criança, com a encenação das profissões, a pintura do cenário para o teatrinho "Branca de Neve e os Sete Anões", a preparação do narrador do teatrinho, e a Branca de Neve ainda sem cabeça e o coração do javali.
Para algumas pinturas utilizámos o exterior da sala. Um dos alunos não resistiu e pintou de verde uma parede azul da escola. Este comportamento menos próprio deu uma ideia que em princípio será realizada: a construção do mural do Dia da Criança. Assim, no dia 1 de Junho, logo após as apresentações teatrais e musicais, os alunos de toda a escolinha serão convidados a pintar o que quiserem, com a cor que quiserem na mesma parede onde este aluno pintou. Espero que seja aprovada a ideia, pois parece ficar excelente pela criatividade dos meninos e meninas dos 2 aos 10 anos, ou mais.

Estas actividades de expressão fazem-me pensar que um dia estes meninos e meninas não terão necessidade de expressar a sua criatividade em momentos violentos de guerra, como o aperfeiçoar da utilização da catana. Para dizer não às evoluções de certa forma não pretendidas, terão ao seu dispôr outros recursos e muita informação. Estou a ler um livro com o título "O Papalagui, discursos de tuiavii chefe de tribo de tiavéa nos mares do sul" e achei que uma parte se adequa ao que aqui se passou, em Lichinga, quando o colonialismo aqui chegou e tentou mudar mentalidades e formas de viver a vida. O livro foi escrito por um chefe de tribo sobre o seu olhar acerca dos europeus na Europa.
Reconheçamos a incontestável felicidade do Papalagui, frustremos as suas tentativas de construir, ao longo das nossas margens banhadas pelo sol, os seus baús de pedra, e de destruir a nossa alegria com pedras, gretas, sujidade, barulho, fumo e areia, como é seu desejo fazer.

Papalagui quer dizer branco, os baús de pedra são as nossas casas e prédios, as gretas são as portas que temos para entrar em todas as casas e dentro das próprias casas, a sujidade é tudo o que podemos imaginar que vamos comprar aos supermercados e afins, o barulho é especialmente dos transportes e música de rádio.
Já não são tribos, mas a herança deixada pelo colonialismo não tem os efeitos que eram pretendidos. Deixou a memória de que são vistos como povo inferior, deixou a certeza que quem é alfabetizado é superior mesmo não sabendo em quê, deixou o desejo de sair daqui para viver como os europeus dizem ser melhor, deixou a vontade ficar cá e ser exactamente como são desde os primórdios sem evolução para o que não lhes interessa. Terceiro mundo? Cada vez mais ambíguo este conceito...
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"A preparação do Dia da Criança está decorrer sem sobressaltos, até porque os alunos deliram com qualquer promenor. Por exemplo, “Titia, o príncipe matou-se” o que servia para me avisar que o príncipe ficou sem cabeça. As profissões não estão a 100%, mas o que é perfeito? Nada. Desde que eles façam o que lhes der mais interesse e os torne mais activos e com aprendizagens significativas, por mim está bom."

"Quando começaram os preparativos para a festa de comemoração do dia da criança os alunos tiveram oportunidade de cantar e dançar várias músicas e escolher uma sequência que incluía música de entrada e uma de saída, tudo organizado pela Isaura. Fiquei contente ao aperceber-me que os alunos escolheram a dança do Mogli para a saída. E assim aconteceu no dia, orgulhosamente saíram ao som das suas vozes e com os gestos adequados. Foi surpresa para a plateia pois ninguém tinha visto esta dança. Ainda hoje ouço alunos de outras turmas a cantarolar a música."


"A festa de comemoração do dia da criança correu melhor do que eu esperava, pelo menos para a 2ª classe. As profissões foram o auge, pois os alunos falaram alto e com convicção do que queriam dizer. O teatrinho dos fantoches não correu tão bem pois os alunos baralharam um pouco os bonecos, mas o Ebraim, como narrador, leu muito bem. Tão bem que até a mãe do Ettor depois veio ter comigo para pedir esclarecimento do porquê do seu filho não saber ler como o Ebraim. Lá lhe expliquei que deve ler muito em voz alta em casa. Mas acrescentei que não se deve preocupar muito pois a maioria dos alunos está ao nível dele. Sobre as danças e músicas, foi bom mesmo sem ter os fatos do museu pois a direcção da cultura não autorizou. Mesmo assim, cantaram e dançaram sem vergonha. Posso dizer que me orgulhei deles. O Abdala e o Herson faltaram à festa, como é normal com eles, pois são alunos que fazem bem os testes e fichas, mas o sentido de assiduidade e responsabilidade não está muito presente... No final demos um saquinho a cada um com prendinhas. O Nilson delirou com o carrinho pequeno de plástico amarelo que lhe calhou. Fartou-se de gabar o carrinho que a Tia Marta lhe deu, muito embora ele saiba que foi o projecto e não eu pessoalmente.

Bom Dia da Criança!

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